17 October, 2008

Meia palavra basta [?]


Ela parou no meio daquele quarto e observou as coisas alí como como se tivesse uma remota impressão de que seria a última vez. Afinal, aquela ligação no dia anterior às onze e meia da noite fora algo totalmente inesperado, e acabou se tornando pertubador. Acordou de sua lembrança, e então se viu novamente naquele quarto, em meio ao silêncio e ao turbilhão de perguntas e dúvidas que pareciam pulsar por entre os móveis e as paredes... Ela passou delicadamente os dedos sobre a cômoda no canto esquerdo, como se fosse esperar levar um choque, e depois, como acabou concluindo consigo mesma, acalmou-se e preferiu pensar que todo aquele estado de apreensão era coisa de mulher, que ela era suficientemente racional para lidar com qualquer tipo de situação. Então sentou-se na cama e pôs-se a aguardar.

Menos de um minuto depois a porta se abriu e ele entrou com um copo d'água na mão para oferecer a ela. Ela aceitou, atônita. Depois ele se sentou na cadeira da escrivaninha, com os cotovelos encostados em ambos os joelhos. Então fitou-a com os olhos longe, bem longe...

– Então... – ela quebrou o silêncio, um pouco eufórica.
– Oi, desculpe – ele respondeu, acordando de seu devaneio – É que eu tô exausto, acabei de chegar do banco. Bem, não sei ainda como que eu vou te explicar tudo...
– Tenta começar pelo começo, creio que seja uma boa idéia.
– Pode ser.

Ela esperou, com um rosto intrigado e ao mesmo tempo impaciente.

– Queria que você fosse a primeira a saber, afinal, o assunto vai afetar completamente os planos pro nosso casamento.
– Hum...
– Não sei se você percebeu, mas eu andei um pouco estranho desde semana passada.
– Percebi. Eu prefiro não acreditar, mas acho que tô começando a entender sobre o quê você tá falando.
– É? Que bom! – ele disse com uma feição aliviada e satisfeita – Mas é verdade, mesmo, Mariana. Só queria que você entendesse que eu achei melhor ir embora. Pra ajeitar as coisas, sabe, esperar tudo voltar ao normal.
– E você acha que isso vai resolver? Tem certeza que é isso mesmo que você quer?
– Nesse caso é preciso, Mariana.
– Renato, você que sabe. Só não vai pensando que eu vou ficar bem depois disso ou feliz com sua decisão.
– É por isso que eu estava com medo. De qual seria a sua reação depois da notícia, a reação da minha família... Também não é fácil pra mim, até porque não queria que isso vazasse pra mais ninguém. Se alguém mais souber do que aconteceu eu tô perdido! Odeio os outros comentando sobre mim. Por isso achei melhor dar um tempo.
– Em pensar que daqui a uma semana a gente começaria com os preparativos pro nosso casamento...
– Eu sei, mas não posso depois disso tudo que aconteceu. Minha vida também tá de cabeça-pra-baixo, acho que ainda mais que a sua. Olha, será que amanhã você poderia ligar pra moça do bufê e cancelar a visita? É que eu ainda tenho que ver pra onde eu vou, e infelizmente tenho que ver isso logo.
– Tá.

Ela virou pro lado, pondo a mão disfarçadamente nos olhos, deixando que o cabelo não revelasse a lágrima que tantava prender, mas que tinha acabado de cair. Ele ficou desolado.

– Eu te amo. Desculpa...
– Mentira! Você não precisava fazer isso, Renato. Eu nunca agiria como você. E parece que você tá querendo fugir, como se isso fosse melhor pra todo mundo.
– Mas vai ser melhor assim!
– Só se for pra você.
– Ei, espera...

Mas ela já tinha ido. Pôs a bolsa no ombro e saiu do quarto, batendo a porta num estrondo relativamente forte. A lágrima que antes saíra com dificuldade e relutância agora vinha sem esforços. E mais outra; e outra. Por fora os olhos congestionados. Por dentro a alma congestionada. Indignação, ódio, vingança... Tudo alagado. Tudo acabado.

No dia seguinte, após voltar do trabalho, Mariana ligou a televisão tentando achar algo que a pudesse distrair. O RJTV não era lá grandes coisas, mas ela resolveu ficar a par do que acontecia lá fora. Na verdade ela queria achar algo que fosse pior. Algo que pudesse consolá-la em meio a tanta tristeza. "Sempre tem gente passando por coisa pior", ela pensou assim. Nada fora do comum: preparativos para o segundo turno das eleições, um assalto em Copacabana, um tiroteio na Linha Vermelh... Mas ela entrou em pânico.

"Hoje à tarde a polícia militar trocou tiros com assaltantes na Linha
Vermelha, já próximo ao Aeroporto Internacional do Galeão, numa tentativa
de arrastão. Três pessoas ficaram feridas e duas morreram na hora. São elas
o taxista João Alves dos Santos e o estudante Renato Ferreira de Castro,
curiosamente o mais recente ganhador do prêmio lotérico da mega-sena. Dois dos
assaltantes foram presos e três ainda estão foragi..."

Mariana nunca mais foi a mesma, desde aquela noite.

3 comments:

Anonymous said...

final surpreendente de alguém que quase foi pro céu ou pro inferno.
marcelle, não costumo usar os comentários dos posts para assuntos que não sejam sobre o texto, mas gostaria de agradecer o que escreveu no seu último comentário. despertar emoções assim nas pessoas é o que me faz continuar a escrever sempre! obrigado!

J.F. de Souza said...

É tão difícil de se encontrar bons entendedores...

Hannah Reis said...

Karaaacas..fikei Chocada Com esse Final! O.O
Tudo tão intenso ..tão forte!
Parabens. Isso ta ficando viciante! :)